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Dessin: Philippe GELUCK http://www.geluck.com/ |
O
que significa ser professor? Eu poderia tentar fornecer uma definição
essencialista da atividade docente, bem ao gosto de uma postura fenomenológica
que me é tão cara, mas correria o imenso risco de recair nos inúmeros lugares
comuns que invadem essas definições. Tomarei um outro caminho. Também óbvio,
por certo, mas ainda assim um caminho diverso. Começarei por dizer o que, a meu
ver, um professor NÃO é (ou ao menos não deveria ser). Definições negativas
servem para isso, depurar o sentido do objeto definido, desbastando o terreno
para que se veja com maior clareza o que se pretende analisar, o que não deixa
de ser um recurso ao método fenomenológico!
O
professor não é um facilitador do conhecimento. Pedagogos modernosos insistem
nessa expressão. Como atualmente todos os saberes estão em rede, e as conexões
em rede fazem com que qualquer pessoa tenha acesso a informações que se
propagam em escala exponencial, a figura do docente, detentor de um
conhecimento especializado e capaz de transmiti-lo aos seus alunos, pareceu
ficar obsoleta. De imediato procurou-se dar uma nova roupagem à velha atividade
docente. O professor passou a ser um facilitador, alguém que apenas conduzirá o
aluno pelas veredas do conhecimento. Essa é uma meia verdade.
Deixo
claro que não desconheço as bases teóricas dessa mudança e suas implicações
pedagógicas. Mas não irei explaná-las aqui, pois não seria o local e o modo
apropriados. Com efeito, a maneira como as pessoas lidam com a informação e o
conhecimento mudou radicalmente nos últimos cinquenta anos, mas isso não leva à
conclusão inevitável de que professores transmutaram-se em meros facilitadores.
Alguém poderia objetar que o aluno é, atualmente, o grande responsável pelo
conhecimento que adquire. Essa afirmação, no entanto, baseia-se na falsa
premissa de que somente com a conexão dos saberes em rede os alunos puderam se
desvencilhar das velhas práticas docentes. Não defendo práticas pedagógicas
antigas, pelo contrário, mas tal afirmação deixou a situação muito cômoda para
muita gente, em especial para os próprios professores. Explico.
O
corolário da afirmação de que o professor é um facilitador é a noção equivocada
de que a sala de aula deve se tornar atraente para o aluno. Para isso, as aulas
devem ser divertidas, sendo o docente a ponte entre o conhecimento e a
diversão. O truísmo dessa afirmação beira o non-sens. Um indivíduo medianamente
informado sabe perfeitamente que em qualquer ramo da atividade humana o
conhecimento será melhor assimilado quando transmitido com leveza, clareza e
objetividade. Mas isso não quer dizer que estudar, e aprender, seja sempre
divertido, não é! Ou, pelo menos, nem sempre é divertido.
Todo
profissional que efetivamente gosta do que faz, esforça-se para tornar sua
atividade mais atraente. Um piloto de uma aeronave, por exemplo, pode
transmitir as informações de voo aos seus passageiros de inúmeras formas, mas a
maioria deles se esforça para transmiti-las de maneira a diminuir a tensão dos
viajantes, em especial daqueles que temem as viagens de avião. Com os
professores não será diferente. Mas ser claro e objetivo ao lecionar não fará
da sala de aula um ambiente mais ou menos atraente. E assim ocorre porque
clareza e objetividade não são sinônimos de simplificação de saberes que, na
sua essência, são complexos e de difícil compreensão.
O
senso comum elege como bom professor aquele capaz de divertir os alunos,
transformando o que é complexo em simples. O professor, no entanto, não é um
alquimista capaz de simplificar temas complexos. Os alunos devem desconfiar de
quem propõe tal velhacaria. Temas complexos e difíceis devem ser tratados na
medida da sua dificuldade e complexidade. A motivação e a paixão ao transmitir
o conhecimento não devem ser confundidas com capacidade de simplificação.
Assuntos complexos, como a teoria das cordas, na Física; o cálculo diferencial,
na Matemática; ou uma questão de Direito Constitucional ou Internacional
(perdoem-me os físicos e matemáticos!), devem ser tratados com a solenidade e
reverência que os temas complexos suscitam para o entendimento humano. O
atrativo, nesses casos, não está na simplificação, mas na clareza, objetividade
e precisão da exposição, capazes de fazer o aluno esforçar-se para suplantar
suas próprias limitações e vencer as barreiras impostas pela complexidade
desses saberes. O deleite e o prazer da atividade cognoscente reside na
superação das nossas próprias limitações intelectuais e heurísticas. Em
educação, não existem atalhos ou caminhos mais fáceis e simples.
Estudar
pode ser divertido? Pode e deve. Assim como trabalhar pode e deve ser
divertido. E não é à toa que os franceses usam o verbo travailler (trabalhar)
para se referir às obrigações estudantis. Mas o trabalho e o estudo são
atividades que exigem concentração, disciplina, dedicação. Quem gosta de
estudar, ou gosta do trabalho que executa, vê no estudo e no trabalho um
deleite, atividades essencialmente prazerosas. Mas nem todos encaram a vida
acadêmica dessa forma e, em razão disso, exigem que o professor transforme
dedicação, concentração e disciplina em algo mais palatável. Esvai-se o
conhecimento pelo ralo da simplificação grosseira, ficam as piadas e a diversão
na sala de aula.
Essa
atitude é muito cômoda para muitos docentes. Se o conhecimento está disponível
em rede e os alunos são responsáveis pelo que aprendem, não mais há razão para
que o professor-facilitador domine com profundidade os conteúdos da disciplina
que leciona. Isso faz com que algumas escolas e professores do ensino
fundamental, por exemplo, preocupem-se em incutir nas crianças o conceito de
cidadania, esquecendo-se de ensinar minimamente os conteúdos mais basilares de
gramática, história ou matemática.
O
professor tem a obrigação de conhecer com grande profundidade os conteúdos da
disciplina que leciona. Alunos não precisam de quem lhes facilite o caminho,
transformando o que é difícil em algo fácil. O que é difícil continuará a
sê-lo, e exigirá mais dedicação do estudante para que possa ser compreendido.
Alunos precisam, sim, de docentes que lhes transmitam com clareza, objetividade
e paixão os conteúdos, simples ou complexos, aprendidos ao longo de uma vida de
dedicação ao estudo. Só assim os estudantes estarão aptos para alçar voos
sozinhos. E para quem pensa que somente agora os alunos passaram a ser
considerados os sujeitos do conhecimento, lembro a maiêutica socrática: “Dar à
luz ao saber não está em meu poder, e a censura que vários já me fizeram de
que, ao colocar questões aos outros, não dou jamais nenhuma opinião pessoal
sobre qualquer assunto, e que causa disso é a nulidade do meu próprio saber, é
censura verídica..”.
Feliz
15/10, dia dos professores!
Fernando Amorim
Fernando Amorim